A mais pequenina

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Princesa

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

MAE


Lembro-me bem.
Muito bem!

Estava uma manhã linda e com muito sol. Presumo que estaríamos em Março ou Abril de 1966…

Na escola, havia três filas de carteiras onde os miúdos se sentavam. Na que ficava do lado das três grandes janelas, sentavam-se os filhos dos ricos, supostamente os mais inteligentes e, por isso, melhores alunos. Na do meio, os menos ricos e alunos medianos. Na outra, ficavam, de forma assumida, os mais pobres e mais burros. Como eram então tratados na linguagem da época… os mais fracos!

Sendo pobre, fiz os quatro anos da primária na fila dos ricos…
A todos, incluindo os ricos, o professor passou “a mão pelo pelo”. Vá lá perceber-se porquê, nunca o homem me tocou.
Nunca!

Em casa, na véspera desta manhã solarenga, o meu pai e minha mãe discutiram.
E muito. Muito!

A minha mãe queria impor que o meu pai me deixasse fazer o exame de admissão[1]. Que teria que ser pago ao professor. Não, nem pensar - dizia o meu pai, desconsolado com a resposta. Não há dinheiro para isso e temos mais dois filhos… nem pensar!
Foi a sentença.

Naquela manhã fui para a escola, a pé, claro – como todos - pensando que quando acabasse aquela 4ª classe teria que ir dar serventia ou a pedreiros ou a calceteiros. Tinha sido a decisão da véspera, que deixou a minha mãe em choro prolongado. Tudo isto me marcou… por isso me lembro.
A aula começou com o professor zangado com o Zé Ancedo. Ele não queria nada com os trabalhos de casa.

Nunca os fazia!
A mãe estava sempre doente do coração e, por isso, não havia trabalhos de casa para ninguém. Era a desculpa, ainda por cima repetida, que dava força à régua que fervia as palmas das mãos grandes do Zé.

Ainda não refeitos da cena, batem à porta da sala.
Fiquei boquiaberto. Era a minha Mãe.

Teria 26 ou 27 anos.
Magra e bonita. De vestido caído e cabelos pretos ligeiramente caídos sobre o ombro…

Ficou de frente para o professor e, por isso, para toda a sala.
Só me lembro de a ver chorar.
E muito.

E, baixinho, porque a pobreza por vezes também envergonha. Todos os colegas se aperceberam e a sala calou-se num silêncio que evidenciou ainda mais o pranto de minha mãe. Encostei a cabeça ao tampo da secretária e não me lembro se chorei também. Talvez!
Aquela mancha de batas brancas que marcavam a nossa sala, tenho-a bem presente na minha memória. Todos olharam para trás para me marcarem e tentarem perceber o que se passava. Estando na fila dos ricos, a minha carteira era a última o que obrigava a que os meus colegas se movimentassem na cadeira e, por isso, nada disfarçassem…

Sendo rápida a conversa, demorou uma eternidade. Percebi que o choro serenou e que algo de positivo terá ocorrido. Percebi o sorriso tão molhado quanto rasgado de agradecimento que minha mãe patenteou…
Só mais tarde, umas semanas mais tarde, percebi tudo que se tinha passado.

O professor, sem eu o saber e sem prévio aviso, começou a impor que eu ficasse no grupo dos colegas que se preparavam para o exame de admissão. Percebi que também iria fazer o exame… e, se calhar, não teria que ir dar serventia a pedreiros.
E assim foi.
O professor propôs-me a exame, assumindo as despesas. Terei tido a melhor nota, mas nunca consegui a confirmação.

Nesse dia de festa, diz-me o Professor:
- Rodrigues, mereces o que te fiz mas nunca te esqueças que a tua Mãe é uma grande mulher.

E eu sabia disso. E de muito mais.
E sei hoje, neste dia muito especial, que estando a dar a minha primeira aula enquanto professor universitário, o devo em primeiro lugar à coragem e ousadia de minha mãe e ao professor que sempre me estimou. A eles lhes devo muito do que se tem passado em toda a minha vida.
Manda a verdade dizer que meu pai se rendeu, percebeu que afinal foi temeroso, receando não ter condições para que todos estudássemos.

E tivemos! Graças ao seu trabalho e labuta incansável, que foi e é exemplo para todos nós.
António Rodrigues

(HOJE SERIA O DIA DO SEU ANIVERSÁRIO)

[1] Exame pago, sem o qual seria impossível ao aluno continuar os estudos