A mais pequenina

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Princesa

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Sta. Cruz - da matança à esperança

 
 
22 de Novembro de 1991.
O dia que marcou a viragem da resistência timorense à selvática ocupação Indonésia.
O dia da matança e da desgraça.
O dia do massacre de Sta. Cruz.

Até então, a resistência tinha vivido tempos de alguma inércia, fruto também do esquecimento a que diplomacia internacional votou o Povo Maubere, incluindo a portuguesa. Aqui, há que lembrar,  que muitos políticos de então (daqueles tempos, como dizem os timorenses) e que hoje estão no exercício do poder, afirmavam sem pudor que a luta do Povo timorense era uma causa definitivamente arrumada.
E perdida.
Os mesmos que mais tarde, a reboque dos acontecimentos de Díli, voltariam ao terreno da diplomacia com mais força e empenho.
E foi precisamente por causa do justificado cancelamento de uma visita a Timor de uma delegação do Parlamento português, que tudo começou.
O Comité Executivo da Resistência havia preparado de forma estruturada, com entusiasmo e com inusitada envolvência nacional, a sua recepção aos portugueses.
E organizaram-se para que o mundo pudesse entender não só o sofrimento do povo, como ainda a dimensão da revolta e do seu protesto.
Foi o desalento e a tristeza absoluta a ausência da delegação.
Mais tarde, a 28 de Outubro de 1991, na igreja de Motael, os jovens, aproveitando a dinâmica e a movimentação criada para a recepção da lusa delegação, refugiam-se na igreja em sinal de protesto; frágil sinal da revolta de todo um Povo em sofrimento, preso e humilhado na sua própria terra...

A 28 de Outubro, os militares indonésios não perdoam a provocação e invadem a igreja, expulsando os jovens. E mataram UM.
"Só UM"
O jovem Sebastião Gomes.
 
Na missa do seu funeral D. Ximenes, o Bispo, clamou a sua revolta e, mais uma vez, reclamou a intervenção do mundo para salvar o povo de Timor. O funeral de Sebastião atraiu milhares e milhares de timorenses que misturavam as lágrimas da revolta, com as lágrimas da dor.

Sebastião teve como todos os cristãos, o direito à missa do sétimo dia.
Mas, em Timor, também há a missa dos quinze dias, para a deposição das flores na campa do falecido. Momento particular do afecto de toda a população, dado que a do sétimo dia, é mais dedicada à família de quem partiu.
A resistência, atenta e ainda frustrada pela ausência dos parlamentares portugueses, aproveitou a manifestação de dor que se expressa na deposição das flores, para organizar um enorme sinal de protesto para o mundo. Estariam, no entanto, longe de sonhar, que seria aquele o primeiro dia do resto das suas vidas...

Foi na madruga de 11 de Novembro que afincadamente preparam a manifestação das flores, conseguindo em poucas horas, a mobilização de milhares para o dia que viria a ser o da viragem para o Povo de Timor.
 
Eram tempos especiais, aqueles que o mundo vivia.

Gorbatchov dava alma à Perestroika, o muro de Berlim havia caído em 1989 e, também por via de tudo isso, as interacções geoestratégicas sofrem mutações em todo o mundo... Timor encontrou aqui um espaço para a luta diplomática que antes não havia, num tempo de troca das ditaduras pelas democracias, incluindo a Indonésia. Parecia que tudo se conjugava. 

Naquela manhã do dia 12, o Povo juntou-se em Motael. Sempre Motael…
Celebrou a Missa o actual Bispo de Díli, D. Ricardo. Sebastião foi por todos chorado e homenageado. Mas havia flores, milhares de flores, para depor na sua humilde campa no agora mítico cemitério de Sta. Cruz... E o Povo, aos milhares, com cartazes de protesto, seguia até ao cemitério. E um deles dizia "venham deputados portugueses, não tenhais medo porque o sangue é nosso" 

Eis aqui o porquê da simbologia de tão trágico quanto promissor acontecimento.
Já dentro do cemitério, acontece um dos maiores símbolos da barbárie a que homem jamais deveria assistir, quanto mais permitir.  A campa de Sebastião fica mesmo lá no fundo do grande campo dos mortos. Entraram milhares para depor as flores, mas muitos por lá ficaram, chacinados à "queima-roupa" pelas armas dos militares da ditadura indonésia. Muitos outros, os feridos, incapazes de fugirem, eram assistidos entre as campas...para mais tarde morrerem com os banhos de creolina "à falta de outros medicamentos no hospital".

Foi o drama que o mundo viu, sentiu e chorou.
Em Portugal a emoção foi ainda maior, pois vimos gente de outro lado do mundo que morria, enquanto outros rezavam o terço a Nossa Senhora de Fátima, a Mãe de todos os timorenses. E rezavam em Português...

O padre Felgueiras, entre outros, correu ao cemitério de estola ao pescoço e de bíblia na mão, para abençoar os falecidos e clamar pelo fim da desgraça. Cá fora, os camiões carregavam os corpos deixando um mar de sangue, das centenas de filhas e filhos de Timor, que lutavam pela paz e pela liberdade. E que morreram, na flor das suas vidas, levando com eles os sonhos da liberdade e do amor a uma pátria martirizada.

Não fora Max Stahl, jornalista, e o mundo de nada saberia. Filmou e escondeu junto a uma campa, a cassete do sacrifício,  que acabaria por se tornar na cassete da esperança.

O mundo acordou e olhou para Timor.
Tudo passou a ser diferente.
 
Timor hoje é independente e hoje comemorou o 12 de Novembro.
Onde estive.
Onde me emocionei.
Onde chorei.
Nada de mais, perante as lágrimas e o sofrimento, daqueles que naquele mesmo espaço, perderam centenas de entes queridos.
 
 
Nota - Portugal, mais tarde, em 1992, teria um gesto de verdadeira solidariedade para com o Povo timorense, que reforçou de forma incomensurável o entusiasmo da resistência, muito em particular a dos mais jovens. A coragem de Rui Marques, de Ramalho Eanes e de Rui Correia, entre muitos que zarparam de Lisboa, no barco Lusitânia Expresso, para depor flores no local do massacre de Sebastião. Não pisaram terra e as flores lançadas ao mar, mas o gesto ainda hoje é recordado com emoção e gratidão, na terra do sol nascente, onde os portugueses chegaram entre 1512 e 1514…
 
António Rodrigues
Em Díli

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

À mesa com uma heroína


 
(Homenagem às Mulheres timorenses)

Vinda de Díli esteve em Torres Novas uma delegação do Parlamento de Timor Leste. Eram dez os membros, onde predominavam as Mulheres.
Aurora, deputada da Fretilin, compunha a delegação que veio até nós para conhecer a lógica e a dinâmica do Poder Local Português. Instalados na cidade do Almonda, dividiram o seu tempo pela autarquia torrejana, pela de Vila Franca de Xira e, muito em particular, aproveitaram para irem até Fátima.
Foi bom, muito bom, tê-los connosco.  
Como sempre, ficaram muito gratos porque muito por cá aprenderam, erradamente convencidos que com eles, nós nada aprendemos.
Nada mais falso!
Fizemos o nosso jantar de despedida.
No Boquilobo, porque as enguias, para os nossos irmãos timorenses, seriam novidade. Que ambiente mais sereno. Que gente mais simples e humilde, mas estóica, inteligente e determinada.
Não conseguia, ainda que discretamente, tirar os meus olhos da expressão de Aurora.
Havia algo de especial naquela cara…
Difícil de “ler” e de interpretar…
Ora era uma mulher serena ora, quando falava, exprimia convicção e acção. Estavam ali uns olhos bonitos, mas tristes.
A minha curiosidade foi mais forte.
Perguntei-lhe: Aurora, a senhora perdeu familiares durante a guerra?
A sua cara transfigurou-se e Aurora agitou-se na cadeira… senti que tinha exagerado com a pergunta e tentei recuar… Mas Aurora não permitiu, porque de imediato disse, “a História é para se contar”. E o que sofri valeu a pena, porque hoje Timor é livre - arrematou…
E, sem mais delongas e sem grandes interrupções, desfiou o rosário da sua desgraça, a razão da tristeza dos seus olhos… e da sua alma.
Falou tão devagar, tão pausadamente e tão serenamente!
- Sabe, fui muito nova para as montanhas. Foi muito difícil, pois deixei o meu menino de dois anos em casa de meus pais… nunca mais o vi, pois morreu passado pouco tempo.
Nas montanhas, mataram o meu marido. Terá sido fuzilado…
            Porque eu tinha irmãos nas montanhas e, para nos amedrontarem, vieram à cidade matar o              meu pai, pensando que assim desistiríamos da luta.
Depois, mataram-me um irmão e logo de seguida mais outro irmão.
Uns tempos mais à frente – dizia com espantosa serenidade - mataram mais um irmão e, logo depois, a minha irmã mais velha…
Envergonhado com a pergunta que fiz, mas emocionadíssimo com a resposta que obtive desta grande mulher, ainda tentei tirar dúvidas: a senhora perdeu sete elementos da família?
- Sim, sim! O meu pai, o meu bebé, o meu marido ainda jovem e quatro irmãos…
- E hoje vivo com os meus filhos que comigo sobreviveram e estou no parlamento para continuar a defender os valores da Nação.
Que deputada! Com tinta de sangue escreveu esta mulher a sua dramática história. Entre muitos outros, sabe bem o que quer, conhece bem o seu Povo e hoje é um dos símbolos de uma nação que vive a esperança de um futuro risonho, em homenagem aos sete que, multiplicados por muitos, perfazem as largas dezenas de milhar que caíram pela dignidade colectiva de um Povo Nobre.
À mesa com uma heroína soa a pouco.
À mesa com heróis.
E nós, nada aprendemos?…
Ai não que não aprendemos!
Por bem menos, muito menos, nos zangamos com a vida.
Eis a lição!
Entretanto, Aurora licenciou-se e hoje estuda para conseguir um Mestrado.
ANTÓNIO RODRIGUES
  
 
 

sábado, 1 de junho de 2013

TIMOR


Acabei de chegar de mais uma missão, realizada a convite do governo daquele país amigo e irmão.

Mais uma vez ali vivi momentos únicos.

1.    A Conferência Internacional sobre o Poder Local ocorreu a 28 e 29 e foi acontecimento único, quer na apreciação do tema quer, muito em particular, na dimensão do debate político que foi, em minha opinião, exemplar.

Foi, seguramente, uma aposta ganha!

Está, por isso, de parabéns o Dr. Tomás Cabral, Secretário de Estado da Descentralização Administrativa e toda a sua equipa a quem endereço os meus parabéns.

2.    O outro, foi a assinatura do protocolo do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da UTL (a minha escola) da Universidade Técnica de Lisboa, com Universidade de Timor Lorosae, acto determinante para um papel indelével que as duas universidades terão no futuro, na formação dos quadros públicos do Estado Timorense.

3.    Por fim, a subida às montanhas, calcorreadas durante 3h (para cada lado) para a entrega de uma imagem de N. Sª de Fátima, ao povo de Salau, no distrito de Manatuto, foi algo para jamais esquecer. A paisagem, a beleza e o misticismo das montanhas associadas à dimensão humana daquele Povo que nos esperou durante 8h para o momento alto, é indescritível. Gente bonita e digna aquela que simbolizo na pessoa da Dionísia, a catequista das crianças de Salau.

Na sua alegria e emoção me revejo e aprendo.
 
Timor é cada vez mais uma lição...

     António Rodrigues

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

MAE


Lembro-me bem.
Muito bem!

Estava uma manhã linda e com muito sol. Presumo que estaríamos em Março ou Abril de 1966…

Na escola, havia três filas de carteiras onde os miúdos se sentavam. Na que ficava do lado das três grandes janelas, sentavam-se os filhos dos ricos, supostamente os mais inteligentes e, por isso, melhores alunos. Na do meio, os menos ricos e alunos medianos. Na outra, ficavam, de forma assumida, os mais pobres e mais burros. Como eram então tratados na linguagem da época… os mais fracos!

Sendo pobre, fiz os quatro anos da primária na fila dos ricos…
A todos, incluindo os ricos, o professor passou “a mão pelo pelo”. Vá lá perceber-se porquê, nunca o homem me tocou.
Nunca!

Em casa, na véspera desta manhã solarenga, o meu pai e minha mãe discutiram.
E muito. Muito!

A minha mãe queria impor que o meu pai me deixasse fazer o exame de admissão[1]. Que teria que ser pago ao professor. Não, nem pensar - dizia o meu pai, desconsolado com a resposta. Não há dinheiro para isso e temos mais dois filhos… nem pensar!
Foi a sentença.

Naquela manhã fui para a escola, a pé, claro – como todos - pensando que quando acabasse aquela 4ª classe teria que ir dar serventia ou a pedreiros ou a calceteiros. Tinha sido a decisão da véspera, que deixou a minha mãe em choro prolongado. Tudo isto me marcou… por isso me lembro.
A aula começou com o professor zangado com o Zé Ancedo. Ele não queria nada com os trabalhos de casa.

Nunca os fazia!
A mãe estava sempre doente do coração e, por isso, não havia trabalhos de casa para ninguém. Era a desculpa, ainda por cima repetida, que dava força à régua que fervia as palmas das mãos grandes do Zé.

Ainda não refeitos da cena, batem à porta da sala.
Fiquei boquiaberto. Era a minha Mãe.

Teria 26 ou 27 anos.
Magra e bonita. De vestido caído e cabelos pretos ligeiramente caídos sobre o ombro…

Ficou de frente para o professor e, por isso, para toda a sala.
Só me lembro de a ver chorar.
E muito.

E, baixinho, porque a pobreza por vezes também envergonha. Todos os colegas se aperceberam e a sala calou-se num silêncio que evidenciou ainda mais o pranto de minha mãe. Encostei a cabeça ao tampo da secretária e não me lembro se chorei também. Talvez!
Aquela mancha de batas brancas que marcavam a nossa sala, tenho-a bem presente na minha memória. Todos olharam para trás para me marcarem e tentarem perceber o que se passava. Estando na fila dos ricos, a minha carteira era a última o que obrigava a que os meus colegas se movimentassem na cadeira e, por isso, nada disfarçassem…

Sendo rápida a conversa, demorou uma eternidade. Percebi que o choro serenou e que algo de positivo terá ocorrido. Percebi o sorriso tão molhado quanto rasgado de agradecimento que minha mãe patenteou…
Só mais tarde, umas semanas mais tarde, percebi tudo que se tinha passado.

O professor, sem eu o saber e sem prévio aviso, começou a impor que eu ficasse no grupo dos colegas que se preparavam para o exame de admissão. Percebi que também iria fazer o exame… e, se calhar, não teria que ir dar serventia a pedreiros.
E assim foi.
O professor propôs-me a exame, assumindo as despesas. Terei tido a melhor nota, mas nunca consegui a confirmação.

Nesse dia de festa, diz-me o Professor:
- Rodrigues, mereces o que te fiz mas nunca te esqueças que a tua Mãe é uma grande mulher.

E eu sabia disso. E de muito mais.
E sei hoje, neste dia muito especial, que estando a dar a minha primeira aula enquanto professor universitário, o devo em primeiro lugar à coragem e ousadia de minha mãe e ao professor que sempre me estimou. A eles lhes devo muito do que se tem passado em toda a minha vida.
Manda a verdade dizer que meu pai se rendeu, percebeu que afinal foi temeroso, receando não ter condições para que todos estudássemos.

E tivemos! Graças ao seu trabalho e labuta incansável, que foi e é exemplo para todos nós.
António Rodrigues

(HOJE SERIA O DIA DO SEU ANIVERSÁRIO)

[1] Exame pago, sem o qual seria impossível ao aluno continuar os estudos