Lembro-me bem.
Muito bem!Estava uma manhã linda e com muito sol. Presumo que estaríamos em Março ou Abril de 1966…

Sendo pobre, fiz os quatro anos
da primária na fila dos ricos…
A todos, incluindo os ricos, o
professor passou “a mão pelo pelo”. Vá lá perceber-se porquê, nunca o homem me
tocou. Nunca!
Em casa, na véspera desta manhã
solarenga, o meu pai e minha mãe discutiram.
E muito. Muito!
A minha mãe queria impor que o
meu pai me deixasse fazer o exame de admissão[1]. Que
teria que ser pago ao professor. Não, nem pensar - dizia o meu pai,
desconsolado com a resposta. Não há dinheiro para isso e temos mais dois
filhos… nem pensar!
Foi a sentença.
Naquela manhã fui para a
escola, a pé, claro – como todos - pensando que quando acabasse aquela 4ª
classe teria que ir dar serventia ou a pedreiros ou a calceteiros. Tinha sido a
decisão da véspera, que deixou a minha mãe em choro prolongado. Tudo isto me
marcou… por isso me lembro.
A aula começou com o professor
zangado com o Zé Ancedo. Ele não queria nada com os trabalhos de casa.
Nunca os fazia!
A mãe estava sempre doente do
coração e, por isso, não havia trabalhos de casa para ninguém. Era a desculpa,
ainda por cima repetida, que dava força à régua que fervia as palmas das mãos
grandes do Zé.
Ainda não refeitos da cena,
batem à porta da sala.
Fiquei boquiaberto. Era a minha
Mãe.
Teria 26 ou 27 anos.
Magra e bonita. De vestido
caído e cabelos pretos ligeiramente caídos sobre o ombro…
Ficou de frente para o
professor e, por isso, para toda a sala.
Só me lembro de a ver chorar. E muito.
E, baixinho, porque a pobreza
por vezes também envergonha. Todos os colegas se aperceberam e a sala calou-se
num silêncio que evidenciou ainda mais o pranto de minha mãe. Encostei a cabeça
ao tampo da secretária e não me lembro se chorei também. Talvez!
Aquela mancha de batas brancas
que marcavam a nossa sala, tenho-a bem presente na minha memória. Todos olharam
para trás para me marcarem e tentarem perceber o que se passava. Estando na
fila dos ricos, a minha carteira era a última o que obrigava a que os meus colegas
se movimentassem na cadeira e, por isso, nada disfarçassem…
Sendo rápida a conversa,
demorou uma eternidade. Percebi que o choro serenou e que algo de positivo terá
ocorrido. Percebi o sorriso tão molhado quanto rasgado de agradecimento que
minha mãe patenteou…
Só mais tarde, umas semanas
mais tarde, percebi tudo que se tinha passado.
O professor, sem eu o saber e
sem prévio aviso, começou a impor que eu ficasse no grupo dos colegas que se
preparavam para o exame de admissão. Percebi que também iria fazer o exame… e,
se calhar, não teria que ir dar serventia a pedreiros.
E assim foi. O professor propôs-me a exame, assumindo as despesas. Terei tido a melhor nota, mas nunca consegui a confirmação.
Nesse dia de festa, diz-me o
Professor:
- Rodrigues, mereces o que te
fiz mas nunca te esqueças que a tua Mãe é uma grande mulher.
E eu sabia disso. E de muito mais.
E sei hoje, neste dia muito
especial, que estando a dar a minha primeira aula enquanto professor
universitário, o devo em primeiro lugar à coragem e ousadia de minha mãe e ao
professor que sempre me estimou. A eles lhes devo muito do que se tem passado
em toda a minha vida.Manda a verdade dizer que meu pai se rendeu, percebeu que afinal foi temeroso, receando não ter condições para que todos estudássemos.
E tivemos! Graças ao seu
trabalho e labuta incansável, que foi e é exemplo para todos nós.
António Rodrigues
(HOJE SERIA O DIA DO SEU ANIVERSÁRIO)
[1] Exame
pago, sem o qual seria impossível ao aluno continuar os estudos