A mais pequenina

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Princesa

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

À mesa com uma heroína


 
(Homenagem às Mulheres timorenses)

Vinda de Díli esteve em Torres Novas uma delegação do Parlamento de Timor Leste. Eram dez os membros, onde predominavam as Mulheres.
Aurora, deputada da Fretilin, compunha a delegação que veio até nós para conhecer a lógica e a dinâmica do Poder Local Português. Instalados na cidade do Almonda, dividiram o seu tempo pela autarquia torrejana, pela de Vila Franca de Xira e, muito em particular, aproveitaram para irem até Fátima.
Foi bom, muito bom, tê-los connosco.  
Como sempre, ficaram muito gratos porque muito por cá aprenderam, erradamente convencidos que com eles, nós nada aprendemos.
Nada mais falso!
Fizemos o nosso jantar de despedida.
No Boquilobo, porque as enguias, para os nossos irmãos timorenses, seriam novidade. Que ambiente mais sereno. Que gente mais simples e humilde, mas estóica, inteligente e determinada.
Não conseguia, ainda que discretamente, tirar os meus olhos da expressão de Aurora.
Havia algo de especial naquela cara…
Difícil de “ler” e de interpretar…
Ora era uma mulher serena ora, quando falava, exprimia convicção e acção. Estavam ali uns olhos bonitos, mas tristes.
A minha curiosidade foi mais forte.
Perguntei-lhe: Aurora, a senhora perdeu familiares durante a guerra?
A sua cara transfigurou-se e Aurora agitou-se na cadeira… senti que tinha exagerado com a pergunta e tentei recuar… Mas Aurora não permitiu, porque de imediato disse, “a História é para se contar”. E o que sofri valeu a pena, porque hoje Timor é livre - arrematou…
E, sem mais delongas e sem grandes interrupções, desfiou o rosário da sua desgraça, a razão da tristeza dos seus olhos… e da sua alma.
Falou tão devagar, tão pausadamente e tão serenamente!
- Sabe, fui muito nova para as montanhas. Foi muito difícil, pois deixei o meu menino de dois anos em casa de meus pais… nunca mais o vi, pois morreu passado pouco tempo.
Nas montanhas, mataram o meu marido. Terá sido fuzilado…
            Porque eu tinha irmãos nas montanhas e, para nos amedrontarem, vieram à cidade matar o              meu pai, pensando que assim desistiríamos da luta.
Depois, mataram-me um irmão e logo de seguida mais outro irmão.
Uns tempos mais à frente – dizia com espantosa serenidade - mataram mais um irmão e, logo depois, a minha irmã mais velha…
Envergonhado com a pergunta que fiz, mas emocionadíssimo com a resposta que obtive desta grande mulher, ainda tentei tirar dúvidas: a senhora perdeu sete elementos da família?
- Sim, sim! O meu pai, o meu bebé, o meu marido ainda jovem e quatro irmãos…
- E hoje vivo com os meus filhos que comigo sobreviveram e estou no parlamento para continuar a defender os valores da Nação.
Que deputada! Com tinta de sangue escreveu esta mulher a sua dramática história. Entre muitos outros, sabe bem o que quer, conhece bem o seu Povo e hoje é um dos símbolos de uma nação que vive a esperança de um futuro risonho, em homenagem aos sete que, multiplicados por muitos, perfazem as largas dezenas de milhar que caíram pela dignidade colectiva de um Povo Nobre.
À mesa com uma heroína soa a pouco.
À mesa com heróis.
E nós, nada aprendemos?…
Ai não que não aprendemos!
Por bem menos, muito menos, nos zangamos com a vida.
Eis a lição!
Entretanto, Aurora licenciou-se e hoje estuda para conseguir um Mestrado.
ANTÓNIO RODRIGUES