A mais pequenina

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Princesa

sábado, 21 de janeiro de 2012

A BOFETADA DO MINDELO

Neste início de manhã a cidade estava quase deserta. Pouca gente por ali andava.
Os mindelenses descansavam da folia própria da véspera de feriado.
O vento era forte e o tempo encoberto.
E tristonho.
Neste cenário, nada habitual em Cabo Verde, deambulei pela praça em busca de sinal publico de WI-FI quando me surgiu quase do nada, um jovem cabo-verdiano.

Delicadamente pediu-me 30s segundos de conversa. De imediato garantiu que não iria pedir dinheiro.
Explicou, nervoso, que era estudante do secundário e que precisava de cadernos de apontamentos.
Não queria dinheiro, repetiu e repetiu, mas que o acompanhasse a uma papelaria e lhe oferecesse os cadernos que tanta falta lhe faziam.
Achei estranho porque era feriado nacional, dia de Cabral, e todo o comércio estava encerrado. Garantiu-me me que não e lá o acompanhei a primeira livraria, logo ali ao lado.
Estava fechada.

Pediu-me me para ir a uma outra. E lá fomos para os lados do palácio do governador... Também estava fechada. Como todo o comércio!
Claro, era feriado, dizia eu...
O jovem, repetindo insistentemente que não queria dinheiro, pediu para irmos ao Monte Sossego onde, garantidamente, uma outra livraria estaria aberta.

Não, não vou, - disse-lhe -, porque é muito longe e já não acredito muito na tua história. Triste, perguntou-me me se podia levar o dinheiro para tentar a compra. Que eu ficaria com os seus parcos haveres como garantia do seu regresso para que eu pudesse confirmar que o dinheiro tinha sido gasto em cinco cadernos de apontamentos. Ou, para mo devolver, se fechada estivesse a loja.
Dei-lhe os escudos! Ainda bastantes! e separá-mo-nos. Garantiu-me que em 20 minutos me reencontraria no hotel. E que traria também a factura da compra...e para isso me pediu o meu nome...
Matutei no caminho, ao encontro do hotel e conclui que história não estava muito bem contada. Afinal era mesmo feriado em todo o Cabo Verde.
A “tanga” tinha sido grande.
Se calhar fui bem enrolado, pensei.
De imediato me arrependi do raciocínio precipitado e porventura injusto. Há que esperar para ver...

Passaram os 20m... Depois 40... E os 50 também.
Nada!
Do rapaz, nem a sombra!
Diz-me a recepcionista do hotel que seguramente fui enganado.
Fiquei fulo, não tanto pelo dinheiro, mas por ter sido burlado por jovem que se arrogou candidato a estudante de cardiologista, na universidade de Coimbra. Porque ganhou bolsa oferecida por uma televisão portuguesa. Porque era bom aluno...

Que história mais bem contada.
Que burro fui em ter ido na conversa.
Não a contes a ninguém que ainda te gozam….pensava eu...
E procurei esquecer tamanho embuste.
Já lá ia uma boa hora desde a despedida e, ao atravessar a mesma praça, vislumbro, de costas, um jovem com camisa rosa, a mesma cor da dos cadernos. Estava em conversa com o meu amigo Pedro Ferreira.
Aproximei-me.
Não é ele, pensei! Mas que coincidência, a camisa é igual…
Aproximei-me e diz-lhe o Pedro:
- Andavas à procura dele, aqui o tens.
O rapaz virou-se e ficámos cara a cara.
Mete a mão ao bolso, saca as notas, estende-me a mão e devolve-me o dinheiro. Com tristeza diz: também estava fechada.
Fiquei gelado e envergonhado.
Sem palavras e ao mesmo tempo feliz, porque a lição foi grande.
E conversámos os três, agora com credibilidade acrescida...
E o jovem tem mesmo inscrição em Coimbra.
Quer ser cardiologista e ficará instalado no S. Teotónio, enquanto estudante. Ganhou mesmo uma bolsa de estudo de um canal televisivo português.
Naquele dia, para ele, não haveria feriado. Tinha que estudar para subir uma nota. O 18,2 não o satisfez...(!!)

Conversámos mais um pouco e despedi-me com pressa.
Queria ainda apanhar a recepcionista para corrigir o juízo precipitado. Não foi preciso muita conversa. Foi por lá que ele começou a procurar... E a recepcionista também já estava esclarecida. E orgulhosa.

Do jovem, nem o nome fixei.
A lição foi grande e, sem traumas, aqui a partilho.
Em homenagem a este a outros jovens cabo-verdianos, que lutam de forma única para vencer obstáculos.
Para estudarem.
Para serem grandes, num país pequeno, mas com alma gigante.
Num país que continua a acreditar no futuro.
Um país com esperança!

Claro que devolvi o dinheiro ao estudante. Sem necessidade de factura de volta.
E deixei um obrigado implícito pela lição.


Não julgues para não seres julgado.
Ajusta-se aqui e muito bem, a palavra do Outro!

António Rodrigues
21 de Janeiro de 2012



2 comentários:

  1. Parabéns pela humildade com que relata esta história verdadeira e bonita de gentes duma
    África que nem sempre é respeitada e acreditada.
    :)

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  2. Vale sempre a pena acreditar. Podemos ser enganados, mas quem perde é sempre aquele que mente. E se teimarmos em não acreditar podemos estar a aniquilar a verdade... e os sonhos gerarão pesadelos! Este é o exemplo em que uns parcos escudos poderão ter fertilizado, em definitivo, a vontade de vencer!

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