A mais pequenina

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Princesa

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Um outro e diferente amor


Coculi é um dos recantos mais bonitos que até hoje conheci.

Nem mais nem menos do que meia dúzia de casas entaladas entre si e encravadas na base da montanha, com uma pobre igreja que respiga e emerge de entre os poucos e velhos telhados. Como pano de fundo as soberbas montanhas de Santo Antão, que mais parece multiplicarem-se entre si. Caísse ali neve, e escondêssemos os coqueiros que, altivos, por detrás do casario emergem, e, garantidamente, poderíamos comparar o cenário ao melhor que da Suíça se conhece.

Coculi mira as suas montanhas e, nelas escarpadas, dançam as largas manchas da flor da cana-de-açúcar, com os seus cachos cinzentos, muitas vezes prateados, que marcam uma paisagem tipicamente africana. E marcam-na, ondeando e brilhando sob o sol quente da morabeza. Morabeza que é também calor, encanto e bem acolher…

Sempre o conheci agarrado aos seus trapiches[1]. Numa labuta calma e serena.

Atento e astuto, de carnes secas, pele bem escura e o boné sempre a proteger a cabeça de cabelos ralos, o nosso velhote é uma referência não só nos vales da Ribeira Grande como em toda a ilha.

Referência de trabalho, coragem, verticalidade e pai de grande prole.

Vinte e um! São os filhos! Os seus…

Mas a sua imagem foi sempre marcada pela sua solene altivez e elegância, montando uma mula, a sua mula, que o transportava para todo o lado… E ela, lá parava de quando em vez, para que o montador pudesse cumprimentar o amigo que passa, sempre com um sorriso e com aquele toque na aba do boné, muitas vezes levantando-o em sinal de cumprimento.

E ele está mesmo velhote.

São já noventa e dois anos… de trabalho, de suor e de dedicação.

E com os filhos, os tais vinte e um, sempre a protestar para que não ande mais em cima da mula… muitas vezes adormece em cima dela, e não fora também ela ser velha, manhosa e bem conhecedora do caminho e muitas vezes o nosso amigo teria entrado perigosamente pelos vales dentro.

E, tanto o avisaram, que o aviso passou a ordem. Recentemente!

E o nosso ancião, Domingos de seu nome, passou a andar só a pé. Mas sempre a caminho das suas fazendas, dos seus trapiches, numa labuta, como ele velha e permanente, a mesma que no tempo lhe permitiu, sabe Deus como, dar uma licenciatura a todos os filhos.

Todos!

Incluindo as filhas.

Convém lembrar este pormenor porque Sô Domingos também foi português e do tempo de Salazar. O tal que não dava muita confiança à formação das mulheres.

Mas com Sô Domingos as coisas foram bem diferentes.

E, porque Cabo Verde não tem universidades, os filhos correram o mundo, espalhados por elas e delas regressando de “canudo” na mão. E há por lá engenheiros, arquitectos, médicos, gestores, juristas e até políticos. E todos bem na vida, como ele gosta sempre de lembrar… Com orgulho bem merecido!

Mas Sô Domingos um dia caiu… não da mula, mas da cama!

E, danado, dizia: tanto me proibiram de montar a mula para não cair, que caio da cama!



Partiu o colo do fémur…

E foi de barco para o Mindelo. Para o hospital…



E, assim, rumou o canal de mar alto, o tal que liga Santo Antão a S. Vicente. O mesmo que, cinquenta anos antes, atravessou a altas horas da madrugada dentro de um pequeno bote a remos, perdido na imensidão das ondas e nos medonhos assobios dos ventos alísios, para vender o seu grogue[2]; o tal que Salazar proibia nos termos das leis austeras contra a candonga. Levava grogue para S. Vicente e, no regresso para Sto. Antão, produtos de comércio que escapavam à sua ilha das montanhas.

E lá ficou e lá ainda está. No hospital.

Com dores e impaciência.

Valha-nos o telemóvel, para através dele dar ordens para que os trapiches funcionem e bem.

E, amores de hoje e de antão, os vinte e um filhos estão sempre presentes. Planearam e cumprem. Todas as noites, um dorme no hospital, no quarto do pai.

Revezam-se.

Para que o pai tenha o filho e o amigo presente. Que contam histórias e vasculham a memória até que o sono chegue. E como já está de “molho”, como ele gosta de dizer, há mais de vinte e um dias, os filhos já vão na segunda volta.

E não falham.

E vêm de longe. Onze deles de avião, vêm de Santiago para dormir com o velhote: o pai e amigo.

É assim esta família.

Cá, seria dos tempos idos e antigos. Ultrapassada.

Lá, família dos dias de hoje. Como muitas outras existem.

E, lá como cá, há sempre uma mulher grande nestas famílias.

E ficou para o fim, porque primeira.

Tendo tido onze filhos é “mãe” de vinte e um.

Não a madrasta, mas a mãe. A amiga. Tolerante, disponível e sempre presente.

A D. Mariazinha!

É assim a família crioula.

É assim em Cabo Verde, onde não há lares nem centros-de-dia para hospedar os velhos. Os tais que temos por cá e em profusão cada vez maior. Os tais onde ficam e esperam pelo último dia.

Outro mundo, outra sociedade, outros valores.

Mais atrasados e mais pobres?

Tiremos as ilações!

António Rodrigues



[1] Destilaria artesanal da cana-de-açúcar para produção do grogue

[2] Aguardente de cana-de-açúcar



1 comentário:

  1. O amor relamente não tem fronteiras nem nacionalidade...Fico profundamente tocado pela forma como faz o retrato de coculi,santo antão e suas gentes.Este texto é digno do louvor crioulo, da sua morabeza.Nenhum caboverdeano secreveria este texto com mais sentimento e conhecimento do sentir crioulo.Bem haja a sua vocação lusofona, caboverdeana e cplp.A nossa comunidade fica mais rica com integrantes como este.

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