O Mar de Canal, pontual como sempre, partiu rumo ao porto de Porto Novo.
Para trás vislumbramos a linda baía do Mindelo, de mar sempre sereno, com os barcos e os botes ancorados que parecem sempre duplicados, tal o reflexo perfeito na água. Linda e azul como sempre. No mar e no céu.
E o barco galga as ondas, por vezes de um azul muito escuro, sempre potentes e gigantes, e que cospem água por força das ventanias. É um sobe e desce, consoante a onda, e, quando desce, mais parece que vai direito ao fundo do mar profundo.
Mas não!
Empertiga-se e, por vezes inclinado, volta a ter força para emergir na coroa da onda… É assim esta sensação de sobe desce. Ora parece que vai para as profundezas do inferno, ora parece que vai ao céu…
E a água, a tal que é cuspida pela força dos alísios, enxagua-nos a face e faz-nos sentir que somos mais um a ter que lutar contra ventos e marés, para que o destino depressa chegue.
Há um silêncio absoluto no magote de crioulos que enchem o barco. E, no bar, o espírito é o mesmo. Onde antes imperava a anedota fácil, a história rápida ou o piropo às meninas que nos servem o melhor café de todo o Mindelo, o ambiente é pesado.
Nhô Domingos não resistiu à queda da cama.
O colo do fémur partido e as suas consequências, associados aos seus 92 anos, ditaram o fim.
Sereno e atento até aos últimos instantes, partiu com a dignidade e a dimensão dos Grandes. Os tais que, sendo Grandes, passam ao lado dos grandes.
Cá em baixo, no porão do barco, com as cautelas e o respeito devido, Nhô Domingos dorme o sono eterno e faz a sua derradeira viagem para Coculi.
Este é o canal que ele já não vê!
O mesmo que ele em vida atravessou, altas horas da madrugada, fugindo às leis injustas de Salazar. Também ele, num bote minúsculo, subiu e desceu as ondas gigantes, enquanto em Coculi se rezava para que voltasse são e salvo. Os mesmos que hoje rezam pela sua eternidade. Para que nos céus se faça justiça.
No ar, gaivotas sobrevoam e acompanham o Mar de Canal.
Na água, peixes voadores surgem do azul das ondas, voam e mergulham mais à frente… Os golfinhos emergem e mergulham num constante entrar e sair de água, que cansa só dever.
Estes, os guardas de honra do Mar de Canal. Estes, os melhores guardiães da última viagem de Nhô Domingos.
No Coculi é grande a tristeza.
O sino da velha igreja, paredes meias com a casa de Nhô Domingos, brame espaçadamente. E deixa no ar um som triste que se espalha pelos vales e inunda o espírito dos viventes. E quando o vento se ajeita e a flor da cana baloiça ao sabor dele, até em Boca de Coruja se ouve o choro do velho e fraco sino…
Aqui e ali ouve-se a criançada. Mas não se vê a criançada…
Ficaram-se pelos pobres quintais onde os mais velhos comentam a hora di bai de Nhô Domingos.
Mas Coculi está sempre bonita.
Sempre!
Mesmo na hora da tristeza!
Vieram de todo o lado.
Da Povoação, da Ponta do Sol, de Fontainhas, do Figueiral, de Boca de Coruja e de Chã de Igreja, entre outras.
O Coculi encheu.
E subiu a montanha rezando pelo falecido, ao som melodioso e penetrante das cordas dos violinos….que arrepiam e choram, tal a destreza e o sentimento que os dedos lhe incutem.
Mais em baixo o terreno da C.A.S.A, que Nhô Domingos não viu construída. Mas que o será, com toda a certeza, para que nela os pobres sejam menos pobres.
E sobe-se. E continua a subir-se.
E, quanto mais se sobe, mais bebemos daquele vento persistente e vislumbramos os cumes de Sto. Antão.
Uma paisagem única.
Uma beleza inaudita.
E chega-se ao Campo-Santo, onde o nosso amigo, para sempre ficará.
No regresso já se sente alguma descompressão.
E já há vozes altercadas na descida compassada.
O que tinha que ser feito, feito está.
Já passou a emoção, a reza e os pêsames que sempre se dão e não se regateiam nestas alturas…
E a família de Nhô Domingos esteve lá. Toda!
Na hora de bai,
Do pai,
Do avô, do bisavô, do irmão, do tio…
Do amigo.
A tarde caiu e a família, agora em casa, continua reunida. A vida passou a ser outra. É a vida! Que se muda de um para outro momento.
É a hora da dor vivida no silêncio, com as memórias que a todos assolam.
Tudo vem à memória.
Tudo!
E o passado, faz-se presente.
Os filhos, alguns, sentam-se junto à igreja, antes que a noite caia.
E falam silêncios, entrecortados com os pequenos goles de grogue.
O Cónego Terças, que mereceu campa rasa, perto da porta de entrada do velho edifício, é testemunha desta homenagem a Nhô Domingos.
Dos filhos que bebem do seu grogue.
Abençoados trapiches que tanta cana espremeram.
Abençoados braços que tudo deram a tantos filhos.
E também os de D. Mariazinha. Que afagaram e trabalharam.
E muito!
Ela, sempre presente, que não se despediu de Nhô Domingos.
Há muitas mulheres assim que, como ela,
jamais de despedem.
Nem do homem, nem dos filhos.
Porque amaram muito.
Amam muito.
Um amor infinito que não tem hora de bai…
Foi assim a hora di bai de Nhô Domingos.
Que descanse em paz.
António Rodrigues
(o autor deste artigo, não esteve lá)
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