A mais pequenina

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Princesa

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Francisca de Bubaque

Numa lancha rumámos a Bubaque, no fantástico e sereno arquipélago dos Bijagós. Para trás ficava a desesperançada, pobre e castigada Bissau, onde ainda marca presença e de que forma, o forte do “tempo português”.
Numa viagem de mais de uma hora, fomos percebendo o porquê de muitos dizerem que o paraíso é aqui mesmo.
Na Terra!

São às dezenas as ilhotas que emergem de um mar sereno e calão.
De um azul, que é azul!
Vislumbrámos e contornámos ilhotas onde imperam velhas cabanas embrulhadas em buganvílias de rosa vivo ou castanho bíblico, assentes na areia açúcar, tal a cor e suavidade do areal…

Nas cabanas, agachadas sob a sombra de árvores de maior porte, dependuram-se cachos gigantes de bananas, que desafiam uma paragem. E, com ela, o deslumbre do mar que se perde, salpicado de estrelinhas cintilantes, que o sol, espraiando-se na pequenina ondulação, inventa.

Afinal, entrámos numa fantástica reserva da biosfera, assim classificada pela UNESCO, composta por 88 ilhas, todas elas de encantos indescritíveis.

Chegámos a Bubaque!
Ilha grande e de denso arvoredo.
Aguardavam-nos a curiosidade de muitas e muitos que raramente por ali vêem caras estranhas e, muito menos, de brancos do Portugal….
Para eles, a festa da recepção e o aplauso fácil.
Uma espécie de regresso ao passado, ali, por alguns, tão desejado…
Para nós, o choque do que se vê. E de quem se vê…

Lojas que o não são mas que merecem esse nome. Armazéns do nada, sujos e desarrumados, com montes de lixo e lixo aos montes.
As casas, que já o foram e das quais resta o esqueleto salpicado de cimento, têm como cobertura, zinco aquecido e pelo sol escaldado.
As crianças, sempre elas, pobres mas muito sorridentes e sem cansarem de correrem ao lado dos visitantes….foram a nossa guarda de honra.

Homens e mulheres saúdam-nos e fazem cortejo atrás de meia dúzia de almas espantadas com a recepção. E os régulos, que pouco mandam, num arquipélago onde, para alguns, quem manda são elas(1) , fazem-nos as honras oficiais da recepção. Eles bem sabem que a comunidade tem muito de matriarcal e não se esquecem que alguns já ficaram à porta com o saquinho da tradição…

O calor abrasava e deixava que o vermelho de uma terra ressequida e poeirenta, se evidenciasse.
Caminhos largos, árvores gigantes que os ladeiam, com curvas suaves que mais além nos transmitem imagens genuinamente africanas, enchem-nos a alma de sonhos perdidos.
Com eles convivemos e por lá almoçámos, num ambiente sempre aberto e franco.

Estávamos dentro da barcola na preparação do regresso.
O povo, um pouco mais lá em cima, acumulava-se para a singela despedida com aceno frenético de um adeus para sempre. De repente, no meio da chusma, alguém insistentemente gritou para que não arrancássemos. O motor desligou-se.

Uma jovem mulher voava sobre a cabeça do povo, de braços abertos e pés descalços.
Bonita e serena!

De pano enrolado em cabeça acarapinhada,
ficou espojada num chão de barco de base milimétrica.

Sentadas, mãe e filha acomodaram-se.
E naquele peito de mãe, se encaixou o corpo dorido da filha…
entre as pernas da futura avó, a nova mãe encontrou conforto e amparo para a loucura que se avizinhava..
Estava grávida!
Em trabalho de parto. E já havia alguns dias.

O motor roncou e o barco voou.
As estrelinhas cintilantes amaciaram o bater daqueles corpos de mulheres.
De Mães.
Que não se ouviam e, no meio de tanto homem, quase pediam desculpa da boleia que apanharam.
As dores de quem ia parir, só no aperto das mãos de quem a acarinhava, se sentiam.
Tamanha dignidade, tamanha dimensão do saber sofrer, sem nada protestar.

E foi uma hora até Bissau, sempre na expectativa de que o parto acontecesse em pleno mar dos Bijagós.

Uma carrinha velha a que chamaram ambulância, arrecadou a jovem e estóica mulher deitada na maca, também ela gasta pelo tempo e pela pobreza.
Deste cenário fica-me a memória do pé descalço, símbolo de uma feminilidade que não tem cor e de um encanto maternal que é mistério.

Já no hotel, ainda não passada uma hora, soubemos que uma menina nascera.
Uma menina.
A 6 de Março de 2010.
Vibrámos, pois com a brutalidade da viagem, pareceu milagre tudo estar bem.
Mãe e filha.
No outro dia, com o Paulo Braga, quisemos ir à maternidade. No caminho disseram-nos que não. Que não fossemos, pois mãe e filha haviam saído para casa de familiares.

Que pena!
Não as veremos.
E não as vimos, pois o avião para Lisboa seria um pouco mais tarde, e uma visita nossa poderia ser descabida.
Num jantar apressado, e porque souberam da nossa preocupação, recebemos um telefonema da família.
Da avó que agradecia a simpatia e boa-vontade.
Fizemos o que tínhamos que fazer e vieram os agradecimentos e o pedido:
Por favor, dê o nome à minha neta!

Que seja Francisca!
Para mim, Francisca de Bubaque, para ser diferente da Francisca que lhe oferece o nome.

E fica este escrito, na esperança de que estas coisas da internet, permitam que o contacto com a Francisca de Bubaque se retome…

Porque as Franciscas deste mundo merecem…

António Rodrigues
25 de Outubro de 2011




(1) Segundo Raul Fernandes, as pessoas confundem o matriarcado e a matrilinearidade; que são duas coisas distintas. O que acontece na sociedade Bijagó é que as filhas, mesmo depois de casadas, permanecem próximas das mães porque quem atribui estatuto de família é a mãe pela linha uterina (matrilinearidade). Esta ligação é mais forte entre a mãe e a filha visto que, diferentemente do que acontece na patrilinearidade - onde as mulheres a partir do momento em que se casam saem do seu círculo familiar original e passam a ser membros da família do marido, sujeitas às regras da casa do marido –, a filha não se distancia muito da sua mãe.


1 comentário:

  1. Por lógica o nosso nome nunca é da nossa responsabilidade. É atribuído por alguém, pelos pais, normalmente. Ele é pensado, ponderado e pode simbolizar algo. De uma forma ou de outra é sempre um elo de ligação entre quem o atribui e quem o recebe. Um nome, atribuido neste contexto, tem um sabor mais vasto. Contribuirá para a aproximação dos povos, das culturas e será mais um elo da justiça e da paz.

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